'Revista da Farmácia' traz reportagem sobre impacto da comercialização e distribuição dos autotestes de HIV nas farmácias

Em dezembro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução autorizando a comercialização de autotestes de HIV em farmácias e drogarias com o objetivo de incentivar o diagnóstico e o início precoce do tratamento, antes mesmo de surgirem os primeiros sintomas da doença. 
De acordo com o Boletim Epidemiológico de HIV e Aids de 2015, lançado pelo Ministério da Saúde (MS) no fim do ano passado, a epidemia no Brasil está estabilizada, tendo registrado a maior queda dos últimos 12 anos na taxa de detecção: 9%, passando de 21,6 casos por 100 mil habitantes, em 2003, para 19,7 por 100 mil habitantes em 2014. Isso representa cerca de 40 mil casos novos ao ano. Desde o início da epidemia, em 1980, até junho de 2015, foram registrados mais de 798 mil casos. De acordo com a matéria da "Revista da Farmácia", publicada no site da Ascoferj (Associação do Comércio Farmacêutico do Estado do Rio de Janeiro), pesquisas indicam que o Brasil foi o país que mais derrubou a taxa de detecção no mundo.
O quadro epidemiológico varia entre os estados. No Amazonas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a epidemia é maior do que no restante do País. Nas capitais, ela também prevalece, em parte por concentrarem os serviços de atendimento a portadores do vírus HIV. E a tendência de “feminização” da epidemia não aconteceu: a relação é de dois homens para uma mulher infectada. Isso se deve ao crescimento do número de homens que fazem sexo com homens (HSH) sem usar preservativos.


Epidemia cresce entre jovens
Segundo a publicação, o maior desafio do MS agora é conter a epidemia entre jovens, que estão se expondo mais ao vírus porque se recusam a usar camisinha. Em 2004, a taxa de detecção em pessoas de 15 a 24 anos era de 9,5 casos a cada 100 mil habitantes, o que equivale a 3,4 mil casos. Já em 2014, esse número foi de 4,6 mil, representando um taxa de detecção de 13,4 casos por 100 mil habitantes, um aumento de 41%.
“Esse é um fenômeno geracional que tem nos preocupado. Vários podem ser os fatores que levam a esse crescimento. Trata-se de uma geração muito mais liberal do que a anterior em relação às questões sexuais. Além disso, é uma geração que não viveu o auge da epidemia de aids nos anos 1980, quando muitos ídolos da juventude morreram de forma dramática”, avaliou o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, do MS, Fábio Mesquita, que esteve no Rio de Janeiro, em um evento promovido pelo Conselho Regional de Farmácia do Estado do Rio de Janeiro (CRF-RJ), com o apoio da Associação Brasileira de Farmacêuticos (ABF), em janeiro.
Atualmente, 90% das pessoas em tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil, estão com a carga viral suprimida, ou seja, próxima de zero. Isso significa dizer que não é possível detectar ou determinar a quantidade de vírus presente no plasma sanguíneo, apesar de a pessoa ainda permanecer infectada.
Por outro lado, 25% das pessoas têm diagnóstico tardio, com alto comprometimento da imunidade. Segundo pesquisas, um a cada cinco indivíduos desconhece que tem o HIV. É esse dado que o MS quer atacar com o autoteste vendido em farmácia, única possibilidade que ainda não era permitida no Brasil.
“O autoteste é uma opção para pessoas que não querem fazer o exame na frente de estranhos e mais uma opção possível para que elas conheçam seu estado sorológico”, disse o diretor do MS. Segundo ele, o autoteste promove o empoderamento individual nas decisões de saúde, permitindo que o indivíduo decida onde, quando e como testar.


Os riscos do autoteste
Desde que a RDC 52/15 foi publicada, autorizando a comercialização do autoteste, representantes de entidades farmacêuticas e profissionais de saúde em geral passaram a apontar diversas questões associadas à venda, ao comportamento emocional do paciente, ao acesso às estatísticas e à contribuição da farmácia e do farmacêutico nesse novo contexto de controle da epidemia de aids no Brasil.
Entre as preocupações estão a tentativa de suicídio depois de um resultado positivo ou a possibilidade de a pessoa infectar outras propositalmente, numa atitude de protesto e revolta. O MS informou que não existem, em nenhum lugar do mundo, indicadores dramáticos, como o suicídio, relacionados ao autoteste de HIV.
Segundo a psicanalista carioca Madalena Sapucaia, a estrutura psíquica de uma pessoa e a maneira com que ela lida com o que acontece em sua vida é anterior a qualquer doença infecciosa. “O suicídio tem a ver com isso e não com o que de grave pode acontecer com alguém. Também acho preconceituoso pensar que um paciente infectado se torne um perverso e passe a infectar outras pessoas. Se há um sujeito perverso, como disse, isso é anterior a qualquer infecção e acontece com infinitas outras situações sociais. Não se deve achar que só quem tem HIV pode ter um comportamento perverso. Além disso, o uso de preservativo é responsabilidade de cada um e não de quem está com o vírus apenas. O portador de HIV nunca deve ser estigmatizado como agente de contaminação”, analisou Madalena.
Alexandre Nabor Mathias França, psicólogo e membro do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), participou do evento do CRF-RJ e também comentou o assunto. Segundo ele, apesar de ter menos gente morrendo de aids, houve aumento no índice de pessoas portadoras do vírus HIV com depressão. “Hoje em dia, vive-se mais, mas o doente precisa ter orientação sobre como viver bem com a doença. No entanto, permanece a escassez de programas voltados à informação. Os hospitais e as UPAs, por exemplo, precisam de mais psicólogos dando suporte, para que os pacientes possam enfrentar melhor a questão”, salientou.
Luiz Fernando Barcelos, diretor executivo da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC), é categórico: “Não achamos que o autoteste vá agregar qualidade ao atendimento de saúde”, disse. Na opinião da entidade, testes para detectar HIV devem ser feitos em ambientes de saúde e sob a supervisão de profissionais treinados. Dessa forma, é possível reunir estatísticas, controlar resultados errados, como um falso-negativo ou um falso-positivo, e dar suporte adequado ao paciente.
A infectologista Cydia Alves Pereira de Souza é a favor do autoteste porque quanto mais pessoas tratadas, menor será a taxa de infecção. Mas, em contrapartida, diz que precisa haver um serviço de acolhimento às pessoas que tiverem um resultado positivo. “No Brasil, onde o acesso aos serviços de saúde é muito precário, particularmente em algumas regiões, me preocupa que farmácias e drogarias vendam esses testes”, alertou.
O papel da farmácia

Os autotestes têm uma sensibilidade de 99,8% na detecção do vírus, contra 99,9% dos testes realizados em laboratório. Em geral, o que se espera é que a pessoa entre na farmácia, peça o autoteste, pague e vá embora. A intenção do MS é que o procedimento seja realizado em casa, com privacidade, conforto e segurança. A resolução da Anvisa não prevê que o autoteste seja feito na farmácia com acompanhamento farmacêutico. É provável que o constrangimento impeça o indivíduo até mesmo de pedir orientação sobre o uso do produto, informa a "Revista da Farmácia".
No entanto, a farmácia deve se preparar para situações imprevistas. E se a pessoa pedir ajuda para fazer o autoteste? E se quiser aconselhamento farmacêutico? E se voltar ao estabelecimento com um resultado positivo em mãos? São muitas as perguntas ainda sem resposta definitiva, mas há quem já defenda um ponto de vista. “Se houver demanda, farmácias e drogarias terão de capacitar os profissionais e remodelar o espaço, criando, por exemplo, salas privativas para atender às pessoas que quiserem fazer o autoteste na farmácia e com o auxílio de um farmacêutico. Manter uma lista com os locais de atendimento a pacientes soropositivos também pode ser útil”, pontuou Ricardo Lahora, farmacêutico e proprietário de farmácia. Vale citar que os fabricantes são obrigados pela RDC 52 a disponibilizaram em número de telefone gratuito para atendimento.
Segundo Ricardo, o sigilo deve ser garantido, por isso a necessidade de existir um local específico para orientar a pessoa sobre como fazer o teste em casa. “Penso que o atendimento deverá ser realizado exclusivamente pelo farmacêutico. Muitos colegas são especializados em Farmácia Clínica, o que vai ajudar bastante. Porém, entendo que precisamos nos capacitar também em outras áreas do conhecimento, como direito, para nos precaver em relação a processos contra a farmácia; psicologia, para entender o paciente quanto à insegurança diante de um resultado positivo; e semiologia, para compreender melhor as manifestações clínicas da aids e esclarecer as possíveis dúvidas do paciente”, acrescentou o farmacêutico.
Uma das grandes preocupações do MS e da Anvisa é quanto à janela imunológica estendida do autoteste. As pessoas precisam ser informadas dos riscos de um falso-negativo. Por isso, as instruções de uso devem ser bastante claras e em linguagem acessível. Nesse ponto, a farmácia deve tomar cuidado para não dar instruções equivocadas, pois pode ser processada como corresponsável, juntamente com o fabricante, por resultados errados. Para minimizar esses riscos, CRF-RJ e a ABF defendem a criação de Procedimentos Operacionais Padrão (POPs).
Estados Unidos, Reino Unido e França já vendem autotestes em farmácias. No Brasil, não se sabe dizer quando estarão disponíveis as primeiras unidades. Até o fechamento desta edição, a Anvisa ainda não havia recebido nenhuma solicitação de registro. O preço do produto também não foi definido, mas pode custar entre 100 e 120 reais. Nos Estados Unidos é vendido por cerca de 60 dólares.
A opinião de um soropositivo
O autor do blog Diário de um Jovem Soropositivo, que descobriu ser portador do vírus num exame de rotina, em 2010, é a favor do autoteste por duas razões. A primeira é a possibilidade que o autoteste oferece de ampliar o número de diagnosticados. “Uma vez que o tratamento antirretroviral ajuda na redução do risco de transmissão do HIV, o autoteste acaba sendo fundamental no controle da epidemia no mundo”, disse, em entrevista por e-mail, mantendo o anonimato.
A segunda razão seria desmistificar o HIV e o autoteste. Com o tratamento antirretroviral atual, disponível gratuitamente em todo o Brasil, ter HIV não é, nem de longe, o que foi no começo da epidemia. “Ainda assim, a imagem dos anos 1980 é a que permanece no imaginário da maioria das pessoas. É importante mudar isso porque, com menos receio do HIV, as pessoas costumam ter mais coragem para fazer o autoteste e, com diagnóstico positivo, começar o tratamento antirretroviral mais cedo, o que ajuda a manter esse indivíduo saudável e, como disse antes, a controlar a epidemia no mundo”, defende o autor do blog.

Países comercializam autotestes em farmácias:
EUA: 2012
Inglaterra: 2014
África do Sul: 2015
Holanda: 2013
Quênia: 2011
França: 2015
China: disponível somente em Macau e Hong Kong em 2005
Austrália: 2014

 

Fonte: Agência AIDS